Decorreu hoje na Delegação Regional de Coimbra da Universidade Aberta esta apaixonante mesa-redonda, onde tive o prazer de debater o tema das novas inteligências artificiais na transformação do ensino, com os colegas Penousal Machado da Universidade de Coimbra e Dionísio Vila Maior da Universidade Aberta, sob moderação do colega João Caetano, da Universidade Aberta.
Enquanto aguardo pela gravação para a transcrever, deixo aqui de memória (e por isso imperfeitamente) uma síntese das minhas intervenções.
Intervenção de apresentação
Dedico-me a usar e transformar a tecnologias para que as pessoas aprendam mais e melhor: para que sejam mais livres. Para que mais gente possa dominar conceitos complexos e tirar partido dessa compreensão do mundo no seu dia a dia. Comecei ainda na licenciatura, pois o meu projeto final orientado pelo Prof. Dias de Figueiredo foi um jogo para ensino da língua francesa. Continuei no doutoramento, com uso da programação de computadores em contexto pré-escolar e depois levando a investigação a muitos outros contextos, quer no ensino básico e secundário, quer no superior, passando pela formação militar em colaboração com a Força Aérea e com a formação profissional em contextos empresariais. Cá estou, portanto, a analisar a mais nova tecnologia que afeta os processos de ensino e de aprendizagem.
1.ª Intervenção no debate
Encaro como equivocadas posições que encaram um ser humano dominador do mundo ou em controlo do seu destino, não olhando para a sua fragilidade. Não é verdade que uma máquina nunca substitua um ser humano: mesmo um objeto como a mesa que temos à nossa frente nos substitui, porque no espaço e tempo que ocupa, não podemos estar no lugar dela. Temos de contornar ou remover. Podemos também apoiar-nos nela para chegar mais alto. Mas o espaço e tempo que a mesa ocupa é só dela. Assim, o tempo que dedicamos a interagir com uma inteligência artificial não usamos para outra coisa. E o tempo que ela nos liberta podemos ocupar com outra coisa. Independentemente do valor que atribuamos a esses tempos, eles existem e neles fomos substituídos no sentido em que esse tempo foi ocupado.
Também encarar, como foi perguntado, o uso da tecnologia como uma questão de confiança é um caso de equívoco quanto a esse papel do ser humano. Não precisamos de confiar num carro para ser atropelados por ele. Não precisamos de confiar no telemóvel para ao recusarmo-nos a usá-lo estarmos a transmitir a outros seres humanos a nossa vontade de estarmos incontactáveis, de estarmos menos disponíveis do que a sociedade espera. A tecnologia não é neutra: pela sua existência afeta a sociedade e a nossa relação com ela não é apenas do indivíduo com a tecnologia, é do indivíduo com a sociedade.
Por fim, foi referido que o ChatGPT "só" (assim, entre aspas, com alguma ironia) adivinha a palavra seguinte, sem planear as frases ou os textos. Este "só" é de facto muito irónico, porque não se refere apenas à simplicidade do que faz advir de processos complexos: também ironiza que a mera sequência pode fazer emergir resultados complexos. Tomemos uma molécula de ADN: as enzimas que a percorrem "só" produzem proteínas nesse processo, linha a linha. Contudo, essa mera geração de proteínas, linha a linha, produz toda a vida que existe na terra. A complexidade emerge dos processos simples.
Assim, a relação do ChatGPT com a educação não será previsível senão em aspetos muito limitados no tempo e no espaço, no curto prazo. A sociedade e a educação são sistemas caóticos. Não no sentido popular de desorganizados, mas no sentido matemático da sua evolução serem muitíssimo sensíveis a pequenas variações dos valores iniciais, a ponto de não ser possível prevê-la com menos esforço do que o próprio acompanhamento dos sistemas. Por isso, quando surge um fator tão potenciador como as inteligências artificiais de fácil acesso aos cidadãos, as transformações a médio e longo prazo serão um acumular de pequenas transições, multifacetadas, que levarão à emergências de dinâmicas inesperadas. Não são transformações lineares, sejam elas boas ou más, mas sim complexas, por camadas, por ínfimas e intricadas cambiantes.
Por isso devemos estar de espírito aberto para as detetar, interpretar e acompanhar, procurando compreendê-las e refletir sobre elas.
2.ª Intervenção no debate
Temos estado, entre nós e nas perguntas do público, a exercer o pensamento crítico sobre os contributos das inteligências artificiais. Estas poderão ser a alavanca para a educação verdadeiramente adotar prioridades que há mais de cem anos vêm sendo defendidas, mas pouco praticadas: a ênfase no pensamento crítico, na transferência do conhecimento para novas situações, na reflexão aprofundada. Isto porque a tecnologia não determina o que fazemos após recebermos uma resposta a um pedido. O que fazemos é uma decisão nossa. Podemos optar por aceitar uma resposta e usar o tempo para outras atividades, ou sermos mais ambiciosos e tentar ir além dela.
Isto porque a sociedade e a educação acompanham os processos educativos, mas centram o acompanhamento e avaliação (tanto para feedback como para certificação) na apreciação de produtos. Como os textos ou produções tinham de ser feitos pelos estudantes, permitiam analisar o seu pensamento. Essa elaboração, contudo, implicava o domínio de técnicas basilares, que eram também o foco do ensino, avaliação e produção.
Como agora essa produção se torna quase imediata e fácil, um desafio da educação será precisamente centrar o esforço não no domínio das técnicas basilares, mas sim na apreciação crítica, na definição da qualidade, na invenção de problemas para evolução, para definir novos objetivos. Isto porque até agora só políticos, dirigentes empresariais ou de organizações sociais dispunham de equipas de estagiários e especialistas ao seu serviço. Agora todos os cidadãos podem contar com uma equipa ao seu dispor. Todos podem ter ao seu serviço estagiários e especialistas, de inteligência artificial, com a natural incerteza quanto à qualidade e rigor do seu desempenho. Tal como com humanos, um estagiário pode fazer um trabalho de rigor ou inventar algo mal-amanhado, para tentar satisfazer um pedido. É preciso estar atento e ter sentido crítico para apreciar os contributos da equipa. Da mesma forma, um especialista pode estar a dar um contributo enviesado, interesseiro ou tendencioso, preocupações que quem a eles recorre tem de ter presentes. Desta forma, o novo desafio da educação será conseguir que as pessoas desenvolvam capacidades de coordenação destas equipas, de definição de objetivos, de aferição crítica dos contributos recebidos, de coordenação da qualidade e do sentido.
3.ª Intervenção no debate
Estas transformações da educação oferecem enormes desafios de implementação prática. A educação centra-se em processos humanos de apoio e acompanhamento: embora qualquer pessoa tenha a capacidade individual de aprender sozinha, estudando por si, sabemos que a não interação, quando vista de forma transversal à sociedade, tem poucos resultados. É essencialmente um processo entre humanos, acompanhando, encorajando, orientando, dando feedback. Mas o tempo e esforço da generalidade dos docentes estão organizados para a apreciação de produtos intelectuais estáticos. Para se poder acompanhar os processos intelectuais e não os produtos, torna-se necessário generalizar abordagens de aprendizagem baseada em projetos ou problemas, colaborativas, participativas. A generalidade dos professores não domina instrumentos ou processos para massificar estas abordagens com os números de alunos com que têm de lidar, pelo que se torna necessário uma grande reconversão individual e organizacional de todo o processo, de forma dificilmente previsível.
Leonel Morgado, 25 de maio de 2023
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