sexta-feira, setembro 25, 2020

Intervenção na Assembleia Municipal de 25-09-2020

 Caros munícipes,

Deixo aqui o conteúdo da minha intervenção no 1.º ponto da ordem de trabalhos da Assembleia Municipal de 25 de setembro de 2020.

Senhor Presidente:

Solicitou-me que explicasse o sentido da minha intervenção [no ponto antes da ordem do dia] sobre o executivo estar a afundar as contas do município. Explicarei, senhor presidente. Num barco, se colocarmos todo o peso de um lado, ele vira; se o colocarmos todo do outro lado, também; se o colocarmos todo atrás, até podemos ficar entusiasmados por ver a proa a erguer-se, mas irá igualmente afundar. É assim com o município, senhor presidente: é preciso distribuir o peso, o esforço, com equilíbrio. Gosto muito de ver por exemplo o investimento nas artes, como o Entrelaçar Corações e as pinturas urbanas. Porque a tinta esmorece mas a recordação e inspiração colocada nos corações permanece e leva-os mais além. Mas não a quem não tiver nascido ou for demasiado jovem para disso beneficiar, senhor presidente: esses verão apenas tinta gasta e não terão o testemunho do momento. Por isso temos de equilibrar isso com o investimento material.  

E temos na iniciativa Entrelaçar Corações, que partilhei, inclusivamente, um bom exemplo de como a arte tem esta virtude de ilustrar de forma que nos marca, de inspirar e de mostrar veementemente aquilo que não vemos doutra forma. Aquela talha aqui à entrada da câmara, caída, tombada há muitas semanas com as rosas espalhadas displicentemente pelo chão... não há melhor ilustração para os tempos vividos de governação das rosas no país e no município. Fosse uma caixa de laranjas e no dia seguinte, lhe garanto, estaria certamente recomposta, senhor presidente.

Atendendo aos aspetos financeiros, do ponto em causa, vou dar-lhe um exemplo do desequilíbrio do concelho, onde se vive o presente e se descura o futuro.

Em abril do ano passado, já lá vai quase ano e meio, expus aqui que este executivo que o senhor lidera estava a preparar zero - zero - candidaturas a fundos comunitários.

Dizia isso mesmo no relatório de gestão e prestação de contas, quanto ao resto do seu mandato:

- Candidaturas em preparação: 0.

- Investimento a candidatar: 0 euros.

Respondeu-me na altura que era um lapso, que havia candidaturas em preparação.

Bem, estamos a um ano do final do seu mandato, senhor presidente. Na situação financeira e nos documentos que iremos discutir nos pontos seguintes nada indica haver candidaturas submetidas e aprovadas neste ano e meio. 

Estamos portanto a entrar no ano final do seu mandato com uma constatação inequívoca: já desperdiçou três anos de obtenção de fundos para investir no concelho. Limitou-se a alterar, com pouca eficácia, o destino dos fundos obtidos pelos executivos anteriores, desperdiçou boa parte deles e nada preparou para conseguir investir no futuro em Ansião.

Será este um destino inequívoco? Será que consigo persuadi-lo, com esta intervenção, a pelo menos tentar usar este último ano para obter algum financiamento europeu em prol dos ansianenses? Digo isto até para seu bem, porque o mérito e crédito por isso será sempre seu. Mas o benefício será também sempre para todos os munícipes.

terça-feira, setembro 01, 2020

Um ano sabático - 2019-2020

 O caminho sabático

 
Após 20 anos de atividade letiva no ensino superior, após 13 anos e meio como Professor Auxiliar, pude finalmente usufruir de uma licença sabática de um ano. Um ano de dedicação a congregar os trabalhos científicos e académicos dispersos e a desenvolver bases científicas sólidas para o próximo fôlego. Um ano para reorganizar, reorientar, preparar, lançar novos trabalhos e valorizar os resultados dos trabalhos desenvolvidos.

O que foi possível atingir neste ano? Grande parte só será vista depois, ao longo do próximo e mesmo dos seguintes, mas aqui tento mostrar o percurso desenvolvido.

1. Fortalecer ligação a outras instituições, gerar coesão e trabalho em equipa: orientação de colegas doutorados




Poucas coisas podem ser tão honrosas quanto colegas doutorados, professores e investigadores de outras instituições, proporem-se vir passar as suas licenças sabáticas sob minha orientação pós-doutoral. Três colegas professores fizeram-no, tendo todos mudado de residência para Portugal para o efeito: O Mario Madureira Fontes, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil); a Eliane Schlemmer, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil); o Dennis Beck, da Universidade do Arkansas (EUA). E iniciou-se a orientação pós-doutoral da Daniela Pedrosa, investigadora do CIDTFF – Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (Universidade de Aveiro, com polo na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro).

O Dennis inclusivamente veio com toda a sua família residir para Ansião, onde a Universidade Aberta tem um CLA (Centro Local de Aprendizagem). Mas o Mario e a Eliane além de estarem em Portugal vieram várias vezes passar longos períodos a Ansião, para podermos sintonizar esforços. Longas caminhadas por estas terras da Ladeia e de Sicó.

Estas coorientações foram muito frutuosas, sendo que o resultado mais valoroso foi a definição da estratégia de investigação Inven!RA, de que falo mais abaixo. Mas refira-se também a imersão e confluência de esforços do Mario e da Daniela no projeto SCReLProg (fala-se abaixo), que tão crítica se revelou para o êxito desse projeto e está já a gerar novos trabalhos.

2. A conclusão, decurso e arranque dos projetos de investigação


No início da sabática deu-se o fecho do SimProve, o "centro de simulação biomédica do futuro" (canto inferior direito da imagem) que me foi agridoce. Inicialmente planeado para ser o local onde íamos testar os conceitos de coreografias virtuais e arquiteturas de software para separação de ocorrências nas simulações e a sua especificação semântica, ou seja, separar os conceitos médicos "o paciente virtual faz isto" do código informático que concretiza isso numa simulação... acabou por se deparar com obstáculos de integração inesperados, com desvios múltiplos ao plano original, que obrigaram a seguir outra técnicas de implementação, ficando esse objetivo (e a minha participação) em segundo plano. Mas aprenderam-se algumas barreiras mais que podem surgir para chegar a esse objetivo de investigação. São lições do terreno.



Outros projetos já tinham tido o seu primeiro arranque, mas viram nesta sabática dar-se os grandes avanços técnicos: no CHIC, com o bolseiro Demetrius Lacet, vimos concretizar-se o primeiro grande avanço no uso de coreografias virtuais para especificar histórias interativas em plataformas 3D, permitindo a professores, formadores, alunos, divulgadores de ciência e outras pessoas definir uma história interativa, vê-la executada em 3D e saber que é possível transferi-la automaticamente entre plataformas diferentes. E ainda se fez uma plataforma demonstradora para histórias sobre o período da reconquista da Península Ibérica.


No SCReLProg, sofremos a perda ingrata e injusta da nossa querida colega Elizabeth Carvalho, após combate desigual... um ano ambivalente, por isso mesmo: êxitos imensos nos avanços alcançados, chegadas e saídas, alegrias... mas tristeza como a perda da Beti não há como esquecer. Só podemos ser gratos pelo tempo que partilhámos. Este projeto quer melhorar a forma como nos cursos de engenharia de software se apoiam os alunos para não serem apenas mestres artesãos da programação e passem a fazer obras de engenharia com ela. Juntámos as técnicas de autorregulação e corregulação das aprendizagens da metodologia que criámos antes, chamada SimProgramming, com as boas práticas do e-learning de informática, com a ajuda do José Bidarra e da Elizabeth Carvalho, com as técnicas de geração de narrativas didáticas OC2-RD2 que nos trouxe o pós-doutorando Mario Fontes, com as boas práticas de imersividade dos meus trabalhos anteriores, dos da Teresa Bettencourt, e dos do Vítor Cardoso, com os métodos de BPMN que nos trouxe a bolseira Ceres Morais, com as abordagens de didática de ciências e tecnologia do José Cravino, meu co-investigador responsável, da Daniela Pedrosa e durante um breve período, da Claudia Machado... e conseguimos criar um método de aplicação online do SimProgramming (chamámos-lhe e-SimProgramming. claro) e testá-lo durante uma unidade curricular inteira da Universidade Aberta (lecionada pelo Pedro Pestana, simultaneamente investigador e cobaia - obrigado, Pedro) e durante um semestre inteiro, com a participação de mais de 50 alunos. No final, para a análise de dados juntou-se a nós o Filipe Penicheiro, que entretanto transitou para o FAVILLE, e a Maria Castelhano, finalista de licenciatura em educação da Universidade de Aveiro, que revelou ser excelente no apoio à análise de dados qualitativos, espero que possa continuar a colaborar connosco. Quem sabe?



No FAVILLE, deu-se o início do projeto, com a participação do José António Moreira, da Lina Morgado e do Filipe Penicheiro. O objetivo é criar um curso europeu para formação de e-facilitadores, um conceito similar ao de e-tutores da Universidade Aberta, mas orientado para contextos mais diversificados, não apenas ensino superior: formação profissional, qualificações, etc.


Já em 2020, assumi a coordenação científica do projeto VRTrainingIndustry - Virtual EnvironmentS for optimization and training in InduStry 4.0, uma colaboração entre o INESC TEC e a VESTAS, a maior empresa mundial na produção de turbinas de energia eólica, que visa criar um ambiente 3D imersivo de formação técnica para esta área. O projeto foi iniciado pelo António Gaspar, pelo Maximino Bessa e pelo Miguel Melo, na fase de definição do preceitos e da modelação 3D, e chega agora à equipa que integro com o António Coelho, no INESC TEC, para a integração com sistemas de formação, para definição dos passos e tarefas imersivas independentes dos modelos 3D, etc. Acompanham-me neste projeto o Manuel Armando Alves, que já vinha dessa fase anterior, além do António Coelho, do Daniel Mendes (novo investigador do INESC TEC) e do Fernando Cassola Marques, bolseiro. Um projeto com grandes desafios e onde tentaremos novamente aplicar técnicas que queríamos ter aplicado no SimProve, mas agora já com essa experiência e com a evolução delas no CHIC.

3. Conselheiro Científico e membro da Direção da iLRN - Immersive Learning Research Network


Em 2019-2020, assumi um papel diferente na iLRN. Além de ser o ano da formalização desta rede como organização não governamental sem fins lucrativos, cuja Direção integro, até então presidia ao Conselho Científico da conferência anual, mas este ano juntei-me ao Christian Gütl na presidência do painel de aconselhamento científico da conferência - ou seja, não com intervenção direta nos atos de gestão do conselho científico, mas na definição dos preceitos e orientações de onde emergem a qualidade e balizas científicas desta comunidade. 

O grande desafio que se me colocou foi que isto coincidiu com a pandemia COVID-19, que levou ao cancelamento do evento físico - a conferência iLRN 2020 - e a sua transferência total para o mundo virtual VirBELA. Tive a felicidade de isto coincidir com a decisão do Jonathon Richter e do Mark Lee se dedicarem de alma e coração à presidência e vice-presidência da iLRN, assumindo a necessidade de levar a rede a um novo patamar de intervenção na sociedade e na ligação entre investigadores, profissionais, empresas e organizações da área, trabalhando incansavelmente para concretizar a conferência com mais de 3000 participantes, com oradores de topo dos setores académico, empresarial e mesmo governamental. Toda a equipa foi fenomenal a participar em debate ativo das regras, dos princípios, da reformulação dos conceitos de apresentação, de debate, de partilha de resultados e experiências, estou muito agradecido pela fantástica experiência que foi participar nesta odisseia.

4. Palestras de disseminação científica

Durante este ano sabático, por convite, proferi 11 palestras de disseminação científica, quer a colegas de outras instituições, quer a empresas, que a profissionais e à sociedade em geral. Além das publicações nas revistas e fóruns da área, é nestes momentos que mais diretamente se consegue partilhar aquilo que se vai descobrindo e aprendendo. Tive o prazer de as realizar, umas presencialmente, outras (especialmente a partir de março de 2020) de forma online para a UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil), para a ciberescola Valor Christian School International (EUA), para o Instituto Politécnico de Setúbal, para o Encontro de Altos Dirigentes da AICEP - Associação Internacional das Comunicações de Expressão Portuguesa (que reúne as empresas de correios e telecomunicações de toda a lusofonia), para os meus colegas da Universidade Aberta no Departamento de Ciências e Tecnologia, para a Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, para o SNESup - Sindicato Nacional do Ensino Superior, para a Universidade Portucalense, para a Unidade de Desenvolvimento dos Centros Locais de Aprendizagem (CLA) da Universidade Aberta, por ocasião do Dia Aberto dos CLA do Sabugal e de Mêda, para a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, e para a Universidade de Zhejiang (China).

5. Contributo social por ocasião da pandemia COVID-19



A pandemia entrou de rompante pela vida de todos. Comecei por tentar ajudar os colegas do ensino superior presencial, que se viram de repente a ter de ensinar online sem qualquer preparação prévias para isso. Primeiro atendendo várias chamadas telefónicas, depois publicando aqui neste blogue a peça "Socorro! A COVID-19 fechou a universidade, como ensino? Sugestões pragmáticas para passagem de contingência do ensino presencial para online", logo traduzida para inglês: "Help! COVID-19 shut down my University, how can I teach now? Pragmatic recommendations for a contingency passage of face-to-face teaching to online teaching".

O primeiro destes textos foi ainda melhorado e publicado no Repositório Aberto da Universidade Aberta e também na página que a Universidade Aberta criou com recursos de apoio a esta contingência. Em conjunto, foram descarregados por 7929 pessoas, que espero o tenham achado útil.

Também fui convidado pela Direção-Geral da Educação, em telefonema urgente da subdiretora-geral, para uma gravação com 1 minuto de recomendações para as escolas básicas e secundárias, destinada a passar na TSF e ficar publicada num sítio Web de recursos para educadores... creio que acabaram por abandonar a iniciativa, porque não soube de mais novidades, mas a gravação foi feita, alterada, cortada, substituída por uma com fundo limpo para tratamento de vídeo, etc. 

Talvez o esforço mais sustentado foi a elaboração de relatórios diários de esclarecimento ao público quanto à análise de dados que era possível fazer com os relatórios diários da DGS, debate sobre as dúvidas que iam surgindo em notícias e redes sociais, etc. Quando constatei que o público em geral - mesmo decisores, jornalistas, etc. - não estava a compreender as dinâmicas de uma progressão geométrica, o que isso representava em golpe de surpresa para a cognição intuitiva habituada a progressões lineares... quando constatei que as notícias se centravam na espuma diária dos números, sem eliminação do ruído, sem contextualização, comecei a partilhar no Facebook a análise que fazia para meu esclarecimento pessoal, diariamente. 
Foi de início apenas uma mera comparação da progressão geométrica com a evolução real, mas acompanhada por textos de enquadramento, que evoluiu rapidamente para um rico painel de instrumentos, que atualizei diariamente durante 5 meses e agora mantenho mais espaçadamente. Não apenas o que se mostra na imagem acima, mas dados de países indicativos, testes de Benford aos dados para tranquilizar as pessoas que desconfiavam da veracidade deles, análise do impacte de eventos, que me permitiu detetar o brutal impacte da manifestação do 1.º de maio, o impacte irrisório da propalada feira de Famalicão, dos concertos no Campo Pequeno e da manifestação antirracismo, a análise do que estava a ocorrer a nível concelhio, a evolução por faixas etárias, que logo me permitiu ver que não era verdade que os casos tivessem mudado subitamente para a população jovem, a origem das mortes e o grau de gravidade dos casos, etc. Resumi tudo o que constatei até ao momento numa peça neste blogue, "História explicada da COVID-19 em Portugal até hoje".

Não faço ideia de qual a visibilidade das publicações diárias, sei que muita gente me faz chegar os agradecimentos pessoais, as partilhas, mas também que há vários serviços de saúde, inclusivamente hospitalares que me transmitiram agradecimento pelo esclarecimento isento e submisso aos dados que prestei. Só vos posso transmitir também o meu agradecimento pelo que fazem e por terem achado úteis os momentos que dedicaram ao que tentei transmitir.

6. Revisão da literatura de investigação sobre aprendizagem imersiva - e contributos metodológicos

Em sinergia de esforços com o Dennis Beck, que como relatei acima veio passar parte da sabática dele comigo, atacámos o que víamos como maior problemas de enquadramento da área da aprendizagem imersiva: a falta de definição conceptual, a falta de visão global dos problemas e abordagens da área. Esta carência leva a que todos os anos os investigadores publiquem trabalhos e resultados onde usam definições diferentes, conceitos desalinhados, não por opção epistemológica mas por mero desconhecimento ou desnorte.

Começámos pela análise das bases teóricas usadas e constatámos o que nos parecia já do nosso quotidiano... a dispersão era total. Pior: a maioria dos trabalhos nem refletia seriamente sobre o âmbito dos conceitos-base, em particular sobre o âmbito do conceito de imersão.

Felizmente constatámos que em anos muito próximos (2016 e 2019) houve um conjunto de autores que se dedicou a dar um ponto de situação contrastado sobre os conceitos de imersão usados na literatura científica em várias áreas, o que nos permitiu simplesmente consolidar esses pontos de situação para solidez conceptual, juntando-lhe a área da investigação dedicada à aprendizagem. Podíamos avançar para a revisão de literatura... podíamos, mas tínhamos um problema: queremos que a investigação em aprendizagem imersiva seja desenvolvida por imensas áreas. Tecnologia, narrativa, artes, psicologia, educação, jogos, comunicação, etc. Como se faz uma revisão sistemática da literatura por tantas áreas, se os termos e conceitos vão sempre divergir, se não sabemos, enfim, onde estão os factos que se quer rever? Constatámos por isso que mais do que uma revisão sistemática da literatura, o que a área necessitava era de uma revisão de âmbito (scoping review), que dissesse aos investigadores "os factos que podem ser revistos estão aqui, podem ser encontrados assim".
Ao tentar desenvolvê-la, constatámos que havia vários protocolos concorrentes usados na literatura, com virtudes próprias. Era uma pena não usufruir das várias virtudes. Por isso começámos por unificar os dois protocolos mais usados para fazer revisões de âmbito, tendo apresentado e publicado o resultado, um protocolo unificado, com exemplo de como o adaptar à investigação em aprendizagem imersiva, na conferência iLRN 2020:


Assim preparados, lançámos ao grande fôlego de revisão. Constatámos que nos últimos 20 anos, ou seja, em todo o séc. XXI já houve 83 artigos de revisão na área, mas apenas 47 deles davam conta real dos factos. Os restantes relatavam quantificações ou relatos de efeitos ou eficácia... mas isso é inútil, em contextos complexos como a aprendizagem, sem se saber o que se está a medir ou avaliar! De nada serve dizer "um ambiente imersivo tem este efeito" sem se saber como foi usado, quais as características, o contexto de uso, etc. O erro é antigo: desde os primórdios da tecnologia educativa que muitos investigadores tentam detetar "os efeitos da tecnologia" para depois constatarem que não podem ser definidos desligados da forma como é usada. A tecnologia não é neutra (afeta) mas não determina: o efeito advém da forma como é usada, do contexto em que é usada.
Ainda assim 47 artigos de revisão em 20 anos já nos permitia analisar a área. Veio então o segundo choque: dos 47, só 29 se referiam entre si. Explico porque é que isto é chocante: tratam-se de artigos de revisão. Se alguém vai rever uma área, espera-se que comece pela revisões anteriormente feitas, para as complementar com os trabalhos mais recentes ou com trabalhos contemporâneos que tenham omitido... ou então para a refazer e verificar se os resultados coincidem; para enquadrar os resultados segundo uma perspetiva nova; etc. Termo-nos apercebido que quase metade das revisões feitas nos últimos anos ignora as demais... é um testemunho para a baixa qualidade metodológica desses trabalhos. Pegando nos 29 que referiam outros trabalhos de revisão (ou eram referidos, no caso dos mais antigos) tivemos o segundo choque: 

A maioria das revisões não tem uma boa perspetiva sobre as revisões anteriores! Quase todas as recentes citam o trabalho de Murat Akçayır e Gökçe Akçayır, de 2017, que é limitado a realidade aumentada. E esse, quanto a revisões anteriores, só tem de relevo o trabalho de Jorge Bacca e restantes colegas, de 2014, também da mesma área. A necessidade da revisão de âmbito aumentava de premência!
Avançámos então pelas fases do nosso protocolo unificado:

Estamos ainda apenas na segunda caixa... :-) no ponto 2.3

Ou seja, estamos a demonstrar quais as lacunas da área.
Para o efeito, recolhemos nos 47 trabalhos de revisão identificados todos - mas mesmo todos - os relatos concretos existentes na literatura sobre usos, práticas e estratégias com ambientes imersivos na aprendizagem. Obtivemos 691 relatos, que classificámos como uso, prática, ou estratégia por validação inter-pares com a ajuda do Patrick O'Shea, da Universidade Estadual da Appalachia. Passámos a análise dos mesmos, tendo concluído já a dos usos, que foi aceite para publicação no Journal of Universal Computer Science, onde agrupámos os usos por temas (seguindo um método clássico de análise temática), tendo depois olhado espacialmente para o resultado segundo as dimensões de imersão de Nilsson et al. A imagem abaixo dá um resumo geral do que encontrámos, ajudando a percecionar os tipos de uso sustentados por relatos concretos do terreno, não apenas palpites. Mas no artigo (que deve sair entretanto) damos o passo seguinte e identificamos os vazios, as áreas onde surpreendentemente nada surge. Áreas como a imersão no mundo físico com sistemas para recolha de dados, que tem um mínusculo pontinho isolado, áreas como os jogos com peças físicas como os Skylanders, áreas como os jogos de personagem (RPG, role-playing games) tradicionais, como o D&D ou o Rolemaster. Há tantos trabalhos sobre isto... mas não surgem relatos na literatura sobre aprendizagem imersiva. Ou seja: a comunidade de investigadores desta área está a passar ao lado de práticas de aprendizagem imersiva relevantes por deficiências da conceção do conceito de imersão!

Agora já fizemos a análise das práticas (342 relatos, que geraram 21 temas de práticas) e das estratégias (195 relatos). Estas últimas geraram em temas um conjunto de estratégias de ensino, teorias de suporte, quadros ou modelos pedagógicos, estratégias de design educaional, de avaliação e de vários níveis de contexto. Estamos ainda em processo de análise e confrontação de tudo isto, de identificação do significado e relevância, mas contamos enviar para publicação em breve.

Depois... continuaremos com a revisão de âmbito, mas aí de forma mais balizada do que esta busca e demonstração da existência de lacunas. Depois... podemos (e muita gente poderá) partir para revisões sistemáticas focadas, objetivas, com propósitos específicos.

E depois... talvez ter um ritmo anual de atualização, uma base de conhecimentos atualizada que permita dar coesão à área? Um sonho!

7. A estratégia de investigação Inven!RA

Toda a atividade anterior se desenvolve num contexto. A partir de uma ambição anterior. Uma ambição que eu já traçara em 2009, num artigo da revista "Educação e Cultura Contemporânea", que desenvolvi no meu seminário de agregação em 2012, que tracei como linha na peça editorial de um fascículo da Educational Technology & Society em 2015... 

A ambição de que jogos, mundos virtuais, sistemas imersivos, laboratórios, saídas de campo... enfim, todas as atividades educativas ricas e diversificadas, participativas, com intervenção e iniciativa viva dos participantes, possam ser mais do que momentos ocasionais, entusiasmantes de desenvolver, mas terríveis de gerir, de repetir, de generalizar... De que vale tanta inovação pedagógica, desde há mais de 100 anos, tão promissora, tão eficaz, mesmo, se a sua implementação soçobra na sobrecarga administrativa ou capacidade de coordenação do professor? As inovações pedagógicas devem poder ser implementadas ao longo de todo um percurso letivo. Ao longo de todo o ano, com todos os alunos, por todos os alunos... não apenas num pequeno grupo ou episódio. Não apenas por mestres jedi delas, mas também por profissionais que simplesmente desejam progredir na sua prática.

Grande parte dos esforços mundiais nesta área já tem vindo a apontar a necessidade de integração, de pervasividade das soluções informáticas, da tecnologia como meio de libertar o docente, libertar os alunos, libertar todos os participantes das tarefas mundanas e lhes facultar tempo e espírito para a aprendizagem, as suas dinâmicas e gestão. Já tenho vindo a dar passos nesse sentido há largos anos, onde pontos-charneira foram o trabalho de anos com a Portugal Telecom Inovação (atual Altice Labs) que identificou os requisitos de integração e criou arquiteturas de software e soluções de integração para eles, e o trabalho de separação das ocorrências nos ambientes do código informático que as gera e processa, através do conceito de coreografias virtuais, que teve um desenvolvimento muito significativo este ano, como já referido acima projeto CHIC. O passo mais fundamental e mais recente foi a conceção de arquiteturas de software que permitem a uma rede diversificada e inestruturada de entidades serem utilizadas indistintamente por docentes, alunos e learning designers para gerir planos letivos com jogos - a arquitetura de autoria e implementação que a equipa do INESC TEC onde atuo desenvolveu para o projeto BEACONING.

Os esforços da sabática, quer no trabalho conjunto, quer na confluência dos projetos neste contexto, quer no processo de revisão de âmbito, confluíram numa estratégia de investigação e numa equipa. A estratégia usa como foco, para atividades pedagógicas ricas e diversificadas, o conceito de aprendizagem inventiva da investigadora brasileira Virgina Kastrup, onde quem aprende fá-lo inventando os problemas que focam e determinam a sua visão do mundo - conceito tão caro e tão trabalhado pela equipa da Eliane Schlemmer na UNISINOS, onde participo com o J. António Moreira no projeto CAPES/PRINT "Transformação Digital e Humanidades". Combinámos este foco com o trabalho de integração de sistemas prévio do BEACONING e com as atividades da área no CHIC e noutros projetos, inclusivamente trabalhos de licenciatura, mestrado e doutoramento, juntámos também as preocupações com a avaliação e registo do Christian Gütl na Universidade Técnica de Graz, a perspetiva da imersividade e da adoção tecnológica da iLRN, os conceitos de didática de ciências e tecnologia e de autorregulação das aprendizagens que são tão prevalentes na abordagem SimProgramming... 
E constituiu-se esta equipa, com uma linha de objetivos: ter uma solução tecnológica para a ambição da viabilidade de disseminação e generalização das atividades pedagógicas ricas e diversificadas. Cada peça é uma prioridade, é uma forma de enquadramento de oportunidades de em conjunto irmos mais além. A solução tecnológica que se preconiza não é um produto: é saber. É identificar as formas de fazer funcionar tudo, através de protótipos abertos que possam ser reproduzidos ou substituídos ou adaptadas por outros. Chamámos-lhe Inven!RA (pronuncia-se "invenira"), por ser para suportar atividades Inventivas (Inven) em rede de participantes ("Reticular") e sem necessidade de um local físico ou virtual rígido ("Atópicas"). Da colisão "Inven" --> <--"RA"... emerge o conhecimento: Inven!RA.
Este resultado da sabática será certamente a linha diretora de muitos anos de trabalho.

8. Os artigos! Já feitos e em curso...

Por fim, os resultados em ciência valorizam-se com publicações. Publicações avaliadas por pares, aceites em revistas ou conferências especializadas, onde os avaliadores tenham reconhecido que há contributo significativo, que há valor no que se pretende comunicar.
Mas escrever leva tempo. E ver publicado, após as inevitáveis recusas, reformulações, correções, aceitações... mais ainda. Pelo que a maioria dos resultados da sabática ainda nem começaram a ser escritos. Outros foram escritos e aceites e aguardam publicação. Outros tinham deficiências e estão em reformulação. Outros apenas iniciados... 

A sabática também me permitiu em muitos casos terminar a escrita (e até ver publicados) trabalhos já feitos no terreno anteriormente mas que só agora foi possível escrever, rever e publicar, como o trabalho com o Pedro Neves e o Nelson Zagalo, ou o trabalho sobre jogos sérios pervasivos com o António Coelho e demais colegas, ou o trabalho sobre a ferramenta de autoria do BEACONING, com o Pedro Cardoso e o António Coelho. Um destaque particular para o trabalho com o meu doutorando Claudio de Lima, em coorientação com a Eliane Schlemmer, totalmente desenvolvido durante a sabática, mas que além de balizar áreas de atuação para atividades letivas com movimento do alunos, particularmente complexas de gerir sem tecnologia, constitui em si um modelo de atuação para apoiar doutorandos a encontrar o seu percurso, que replicarei com alunos futuros.

Com esta ressalva, aqui deixo o que já foi escrito, publicado e aceite, como resultado da sabática... há mais, em reformulação, edição, preparação...

Beck, D., Morgado, L. & O'Shea, P. (in press). Finding the Gaps about Uses of Immersive Learning
Environments: A Survey of Surveys. To appear in Journal of Universal Computer Science.

Cardoso, P., Morgado, L., & Coelho, A. (2020). Authoring game-based learning activities that are manageable by teachersERCIM News, 119.

Coelho, A., Rodrigues, R., Nóbrega, R., Jacob, J., Morgado, L., Cardoso, P., van Zeller, M., Santos, L., & Sousa, A. A. (2020). Serious Pervasive GamesFrontiers in Computer Science, 2, 30.

Lacet, D., Penicheiro, F., Morgado, L., & Coelho, A. (2019). Preserving story choreographies across multiple platforms: An approach to platform-independent reuse of characters' behaviors for games, simulations, animations and interactive videos. In Proceedings of the 9th International Conference on Digital and Interactive Arts (pp. 1-4), article 58.

Lima, C. C. D., Schlemmer, E., & Morgado, L. (2020). Managing learning in environments where students move: a panorama of problems and contributions. EJML 2020-5. º Encontro sobre Jogos e Mobile Learning, 248-258.

Morais, C. G. B., Pedrosa, D., Fontes, M. M., Cravino, J., & Morgado, L. (2020). Detailing an e-Learning course on software engineering and architecture using BPMN. In First International Computer Programming Education Conference (ICPEC 2020) (Vol. 81, pp. 17-1). Schloss Dagstuhl-Leibniz-Zentrum für Informatik.

Morgado, L. (2020). Abordagens para ensino da integração dos jogos (especialmente os sérios) em sistemas de informaçãoAtas do 1. º SEVj-Seminário Sobre Ensino de Videojogos, 157-160.

Morgado, L., & Beck, D. (2020). Unifying Protocols for Conducting Systematic Scoping Reviews with Application to Immersive Learning Research. In 2020 6th International Conference of the Immersive Learning Research Network (iLRN) (pp. 155-162). IEEE.

Neves, P. P., Morgado, L., & Zagalo, N. (2020). Uncovering literacy practices in the game total war: shogun 2 with a contract-agency model. International Journal of Film and Media Arts, 5(1), 36-47.

Pedrosa, D., Morgado, L., Cravino, J., Fontes, M. M., Castelhano, M., Machado, C., & Curado, E. (2020). Challenges Implementing the SimProgramming Approach in Online Software Engineering Education for Promoting Self and Co-regulation of Learning. In 2020 6th International Conference of the Immersive Learning Research Network (iLRN) (pp. 236-242). IEEE.

sábado, agosto 22, 2020

História explicada da COVID-19 em Portugal até hoje

 É neste momento claro que desde o início de agosto estamos, mais uma vez, numa fase diferente de contágio da COVID-19 em Portugal. Para melhor perceção do que têm sido estes quase seis meses, fiz o gráfico abaixo, que realça as fases fundamentais do que ocorreu no país desde o início de março.

É preciso recordar que embora as pessoas contagiadas num dia possam só apresentar sintomas entre 2 a 14 dias depois, a esmagadora maioria delas, se vier a ter sintomas, tê-los-á entre o 4.º e o 6.º dia após o contágio. Após ter sintomas e procurar apoio médico e testes, demora na melhor das hipóteses 2 dias até haver resultados dos testes reportados nos relatórios nacionais. Isto corresponde aos sintomas até ao 4.º dia, altura em que começam a revelar-se, sendo o efeito potenciado nos dois dias seguintes, à medida que chegam aos relatórios nacionais os contágios com sintomas ao 5.º e 6.º dia.

Para efeitos desta história, é usada esta distância de 6 dias, que se tem revelado desde março coerente a associar alterações globais aos efeitos no crescimento do contágio.




1.ª fase: o crescimento explosivo

Nesta fase, não havia qualquer alteração dos comportamentos sociais. Sendo o vírus SARS-CoV-2 de contágio fácil e não estando a população imune, cada pessoa contagiada espalhava-o a outras que por sua vez o disseminavam ao mesmo ritmo. O efeito foi um crescimento assustadoramente em linha com a matemática simples das progressões geométricas, com r= 1,35, que a maioria da população terá até estudado na escola:
Ou seja, temos a sequência: 1 casos, 2 casos, 4, 7, 10, 14, 20... 
O importante recordar dos tempos das escola é que estas progressões parecem lentas, mas são explosivas (é como o exemplo dos grãos de trigo no tabuleiro de xadrez). Neste caso, bastaria 1 mês e 3 semanas para atingir toda a população portuguesa. Tal nunca aconteceria, porque à medida que muita gente estivesse contagiada, as pessoas contagiadas já se cruzariam menos com pessoas por contagiar. Mas isto só se faria sentir após milhões de pessoas terem sido contagiadas, ou seja após muitos milhares de mortos.

Esta fase durou até o dia 18 de março, ou seja, no terreno, tudo começou a mudar 6 dias antes, dia 12 de março. Nesse dia, o governo anunciou que a situação era grave e que uns dias depois iriam fechar as escolas. Mas a população começou a alterar o seu comportamento após esse anúncio e o crescimento deixou de ser explosivo.

2.ª fase: o crescimento contido e travado

Após o anúncio pelo governo de que a situação era grave a ponto de se ter de fechar as escolas (12 de março) os comportamentos sociais alteraram-se e isso refletiu-se no crescimento do contágio 6 dias depois, que começou a ser mais lento do que a progressão geométrica até aí vigente.
Com o acumular de alterações no comportamento social: o encerramento da escolas, o confinamento, o estado de emergência, o crescimento do contágio começou a ser cada vez mais lento até que visivelmente começou a aplanar, ou seja, a aproximar-se de uma fase de quase paragem, onde o número de novos casos por dia era insignificante e ocasionalmente surgia algum surto isolado. A este formato da curva (cresce depressa, depois aplana) chama-se "curva em forma de S" ou "curva sigmoide". Como a parte de cima do "S" não é igual à parte de baixo (demora mais a travar do que demorou a crescer) diz-se que essa sigmoide não é simétrica. Ou seja, é uma curva sigmoide assimétrica. Isto só para se perceber o uso deste termo no resto do texto.
Este abrandamento era notório em todas as regiões, mesmo em Lisboa, apesar de em Lisboa estar a abrandar mais devagar, mas estava a abrandar também. 
Foi a região de Lisboa que alterou tudo e gerou a fase seguinte, devido à disseminação súbita do contágio por quase todos os concelhos em redor da cidade, detetada entre os dias 6 e 8 de maio.

Mudança da 2.ª para a 3.ª fase: o impulso da manifestação do 1.º de maio

Entre os dias 6 e 8 de maio foram subitamente reportados 852 casos em Lisboa e Vale do Tejo. Parte destes terão sido alguns surtos detetados no final de abril e contidos em poucos dias, como o surto em fábricas da Azambuja, mas a grande transformação nesses dias foi o surgimento de "impulsos" (ou seja, saltos súbitos como o que é visível no gráfico junto à área cor-de-rosa) em vários concelhos em redor de Lisboa, que a seguir aceleraram o seu crescimento. Mais significativo ainda é que vários concelhos que estavam quase sem contágio diário subitamente apresentaram a partir dessa altura um contágio em série de potências, como o Seixal, o Barreiro e muitos outros. Foi pelo menos em 11 concelhos que surgiu em paralelo este efeito, o que revela que não se deveu a surtos individualizados mas a um evento hiperdisseminador. Certamente a manifestação do 1.º de maio em Lisboa, com mais de um milhar de pessoas. Embora tivesse havido distanciamento na manifestação propriamente dita, não o houve no transporte de/para ela, como foi visível em imagens do dia, nem o uso de máscaras terá sido rigoroso nesse transporte, dado que inclusivamente a comunicação do governo sobre o tema era, ao arrepio das publicações científicas existentes, equívoco.  
Apesar das consequências graves para o país, este evento também nos permitiu descobrir que o contágio podia ser contido sem medidas tão gravosas como o confinamento generalizado. Em primeiro lugar, porque a cidade de Lisboa propriamente dita, cujos habitantes terão usado essencialmente o metropolitano para se deslocarem, não apresentou mudança no crescimento; e os concelhos servidos com comboio/metro rápido até ao local da manifestação tiveram efeitos menores do que os concelhos que recorreram a transporte em autocarros. Ou seja: o espaço fechado dos autocarros, sem renovação de ar durante toda a viagem, foi muito mais contagiante do que o espaço fechado do metropolitano e comboio, onde pelo menos as portas se abrem em cada paragem e as pessoas vão entrando e saindo.
Além disso, eventos posteriores, onde houve uso generalizado de máscaras e não houve transporte significativo em autocarros, como a manifestação antirracismo ou os concertos no Campo Pequeno, não geraram qualquer alteração no comportamento do contágio, o que indica que as máscaras pelo menos foram suficientes para impedir a disseminação em ambiente de comboios e metropolitano.

3.ª fase: volta tudo ao mesmo, mas mais devagar

Depois do impulso hiperdisseminador da manifestação do 1.º de maio em Lisboa, esta região parou de travar o crescimento e começou a acelerar. Mas as restantes regiões continuaram a travar o crescimento durante cerca de mais um mês. Dada a dimensão do contágio em Lisboa, esta região só por si determinou o comportamento da curva de contágios entre os dias 9 de maio e 11 de agosto (ou seja, contágios entre os dias 3 de maio e 5 de agosto).
Grosso modo, o que ocorreu nestes três meses foi uma corrida "atrás do prejuízo". Como subitamente havia contagiados novos, espalhados por todos os concelhos da região, em contacto social com novos grupos sociais até aí não expostos, começaram a surgir surtos por todos os concelhos da região de Lisboa, que eram atacados e em geral contidos pelas autoridades de saúde. Ficaram até ao final apenas algumas freguesias mais complexas, mas onde o esforço acabou por dar resultado também.
À medida que pessoas de outras partes do país iam a Lisboa e regressavam às suas localidades, iam gerando novos surtos. Contudo, como o contágio no resto do país estava praticamente parado, os serviços de saúde tinham capacidade humana para ir atacar esses surtos e foram sendo contidos. Isto gerou no gráfico global uma nova fase em "S", em curva sigmoide assimétrica, correspondente à etiqueta em azul. Note-se que é uma curva apesar de tudo mais lenta, mais plana, do que a semelhante da 2.ª fase, porque agora os cuidados da população vão sendo cada vez mais generalizados. Se por um lado havia alguma descontração por não se estar a viver o crescimento explosivo, o entranhar dos hábitos no dia-a-dia foi notoriamente eficaz a tornar o crescimento mais lento.
No gráfico das regiões, este movimento de ida de pessoas a Lisboa e regresso às suas localidades gerou o efeito em "lomba" idêntico ao de Lisboa, obviamente mais contido como já expliquei acima.
No dia 15 de julho deram-se os festejos da conquista do campeonato nacional de futebol (OK, "1.ª Liga") pelo Futebol Clube do Porto, em geral sem cuidados. O efeito foi notório a partir de 6 dias depois, 21 de julho: a zona Norte deixou de estar em forma de "lomba" e passou a crescer rapidamente. Contudo, como em Lisboa se estava a diminuir ao mesmo tempo, um efeito compensou o outro e o aspeto geral do país era semelhante.

4.ª fase: estamos em novo crescimento, mas de que tipo?

Por volta do dia 11 ou 12 de agosto, há nova mudança: o ritmo em curva sigmoide assimétrica anterior, que vinha a aplanar, a ficar quase anulado como na 2.ª fase, foi quebrado: voltou a haver um crescimento, sendo ainda cedo para descortinar que tipo de crescimento é, mas pelo menos não é explosivo. É algum tipo gerível pelo sistema de saúde: linear, sigmoide, etc.
Tratam-se de contágios ocorridos a partir de 5-6 de agosto. Note-se que é generalizável a todo o país: Lisboa deixa de travar, começa a apresentar um ritmo regular de contágios; o Centro idem; o Norte, onde se antevia um abrandamento dos surtos pós-festejos, mantém o crescimento acelerado. Agosto começou a um sábado, pelo que os dias 5-6 de agosto correspondem ao meio da primeira semana de férias de muitos portugueses, quer residentes em Portugal, quer emigrados que visitam o país. Uma hipótese que se pode levantar é que uns e outros se tenham comportado da mesma forma: ido de férias com alguma cautela, mas após alguns dias começado a descontrair talvez mais do que o devido. Mas é cedo para sabermos se esta hipótese é verdadeira.

5.ª fase: e o futuro?

O destino mais expectável é que esta fase atual geral gere um efeito em "lomba" como a segunda fase, graças aos esforços de contenção dos surtos pelas autoridades de saúde. Contudo, ainda é cedo para o saber, porque se a hipótese de descontração em férias for verdadeira, só no início de setembro veremos a generalidade do seu efeito.
É no início de setembro que as crianças regressam às escolas, onde talvez se verifique um comportamento semelhante ao da hipótese de comportamento em férias: cauteloso nos primeiros dias, descuidado nos seguintes. Como a maioria dos contagiados, especialmente jovens, não apresenta sintomas - mas contagia outros passados alguns dias - é expectável que seja na segunda semana de aulas que comece a haver contágios decorrentes disso. Como só daí a uma semana é que esses contágios serão detetados e reportados, é natural que só no final da terceira semana de aulas comece a haver contágios detetados entre a população mais idosa: avós dos alunos, pais dos funcionários, etc. Se a reação for rápida por parte das autoridades face a cada surto, como é de esperar que seja, provavelmente teremos uma nova curva em "s" (sigmóide assimétrica) como nas fases 2 e 3. Se for lenta, como os óbitos só surgirão em número visível três semanas após os contágios a idosos, então a reação da população (e das autoridades) só surgirá no final de outubro ou início de novembro. Esperemos que não seja esse o caso, porque esse atraso na reação lançar-nos-ia para uma fase de novo crescimento rápido como está neste momento a ocorrer em Espanha. 

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