sábado, agosto 22, 2020

História explicada da COVID-19 em Portugal até hoje

 É neste momento claro que desde o início de agosto estamos, mais uma vez, numa fase diferente de contágio da COVID-19 em Portugal. Para melhor perceção do que têm sido estes quase seis meses, fiz o gráfico abaixo, que realça as fases fundamentais do que ocorreu no país desde o início de março.

É preciso recordar que embora as pessoas contagiadas num dia possam só apresentar sintomas entre 2 a 14 dias depois, a esmagadora maioria delas, se vier a ter sintomas, tê-los-á entre o 4.º e o 6.º dia após o contágio. Após ter sintomas e procurar apoio médico e testes, demora na melhor das hipóteses 2 dias até haver resultados dos testes reportados nos relatórios nacionais. Isto corresponde aos sintomas até ao 4.º dia, altura em que começam a revelar-se, sendo o efeito potenciado nos dois dias seguintes, à medida que chegam aos relatórios nacionais os contágios com sintomas ao 5.º e 6.º dia.

Para efeitos desta história, é usada esta distância de 6 dias, que se tem revelado desde março coerente a associar alterações globais aos efeitos no crescimento do contágio.




1.ª fase: o crescimento explosivo

Nesta fase, não havia qualquer alteração dos comportamentos sociais. Sendo o vírus SARS-CoV-2 de contágio fácil e não estando a população imune, cada pessoa contagiada espalhava-o a outras que por sua vez o disseminavam ao mesmo ritmo. O efeito foi um crescimento assustadoramente em linha com a matemática simples das progressões geométricas, com r= 1,35, que a maioria da população terá até estudado na escola:
Ou seja, temos a sequência: 1 casos, 2 casos, 4, 7, 10, 14, 20... 
O importante recordar dos tempos das escola é que estas progressões parecem lentas, mas são explosivas (é como o exemplo dos grãos de trigo no tabuleiro de xadrez). Neste caso, bastaria 1 mês e 3 semanas para atingir toda a população portuguesa. Tal nunca aconteceria, porque à medida que muita gente estivesse contagiada, as pessoas contagiadas já se cruzariam menos com pessoas por contagiar. Mas isto só se faria sentir após milhões de pessoas terem sido contagiadas, ou seja após muitos milhares de mortos.

Esta fase durou até o dia 18 de março, ou seja, no terreno, tudo começou a mudar 6 dias antes, dia 12 de março. Nesse dia, o governo anunciou que a situação era grave e que uns dias depois iriam fechar as escolas. Mas a população começou a alterar o seu comportamento após esse anúncio e o crescimento deixou de ser explosivo.

2.ª fase: o crescimento contido e travado

Após o anúncio pelo governo de que a situação era grave a ponto de se ter de fechar as escolas (12 de março) os comportamentos sociais alteraram-se e isso refletiu-se no crescimento do contágio 6 dias depois, que começou a ser mais lento do que a progressão geométrica até aí vigente.
Com o acumular de alterações no comportamento social: o encerramento da escolas, o confinamento, o estado de emergência, o crescimento do contágio começou a ser cada vez mais lento até que visivelmente começou a aplanar, ou seja, a aproximar-se de uma fase de quase paragem, onde o número de novos casos por dia era insignificante e ocasionalmente surgia algum surto isolado. A este formato da curva (cresce depressa, depois aplana) chama-se "curva em forma de S" ou "curva sigmoide". Como a parte de cima do "S" não é igual à parte de baixo (demora mais a travar do que demorou a crescer) diz-se que essa sigmoide não é simétrica. Ou seja, é uma curva sigmoide assimétrica. Isto só para se perceber o uso deste termo no resto do texto.
Este abrandamento era notório em todas as regiões, mesmo em Lisboa, apesar de em Lisboa estar a abrandar mais devagar, mas estava a abrandar também. 
Foi a região de Lisboa que alterou tudo e gerou a fase seguinte, devido à disseminação súbita do contágio por quase todos os concelhos em redor da cidade, detetada entre os dias 6 e 8 de maio.

Mudança da 2.ª para a 3.ª fase: o impulso da manifestação do 1.º de maio

Entre os dias 6 e 8 de maio foram subitamente reportados 852 casos em Lisboa e Vale do Tejo. Parte destes terão sido alguns surtos detetados no final de abril e contidos em poucos dias, como o surto em fábricas da Azambuja, mas a grande transformação nesses dias foi o surgimento de "impulsos" (ou seja, saltos súbitos como o que é visível no gráfico junto à área cor-de-rosa) em vários concelhos em redor de Lisboa, que a seguir aceleraram o seu crescimento. Mais significativo ainda é que vários concelhos que estavam quase sem contágio diário subitamente apresentaram a partir dessa altura um contágio em série de potências, como o Seixal, o Barreiro e muitos outros. Foi pelo menos em 11 concelhos que surgiu em paralelo este efeito, o que revela que não se deveu a surtos individualizados mas a um evento hiperdisseminador. Certamente a manifestação do 1.º de maio em Lisboa, com mais de um milhar de pessoas. Embora tivesse havido distanciamento na manifestação propriamente dita, não o houve no transporte de/para ela, como foi visível em imagens do dia, nem o uso de máscaras terá sido rigoroso nesse transporte, dado que inclusivamente a comunicação do governo sobre o tema era, ao arrepio das publicações científicas existentes, equívoco.  
Apesar das consequências graves para o país, este evento também nos permitiu descobrir que o contágio podia ser contido sem medidas tão gravosas como o confinamento generalizado. Em primeiro lugar, porque a cidade de Lisboa propriamente dita, cujos habitantes terão usado essencialmente o metropolitano para se deslocarem, não apresentou mudança no crescimento; e os concelhos servidos com comboio/metro rápido até ao local da manifestação tiveram efeitos menores do que os concelhos que recorreram a transporte em autocarros. Ou seja: o espaço fechado dos autocarros, sem renovação de ar durante toda a viagem, foi muito mais contagiante do que o espaço fechado do metropolitano e comboio, onde pelo menos as portas se abrem em cada paragem e as pessoas vão entrando e saindo.
Além disso, eventos posteriores, onde houve uso generalizado de máscaras e não houve transporte significativo em autocarros, como a manifestação antirracismo ou os concertos no Campo Pequeno, não geraram qualquer alteração no comportamento do contágio, o que indica que as máscaras pelo menos foram suficientes para impedir a disseminação em ambiente de comboios e metropolitano.

3.ª fase: volta tudo ao mesmo, mas mais devagar

Depois do impulso hiperdisseminador da manifestação do 1.º de maio em Lisboa, esta região parou de travar o crescimento e começou a acelerar. Mas as restantes regiões continuaram a travar o crescimento durante cerca de mais um mês. Dada a dimensão do contágio em Lisboa, esta região só por si determinou o comportamento da curva de contágios entre os dias 9 de maio e 11 de agosto (ou seja, contágios entre os dias 3 de maio e 5 de agosto).
Grosso modo, o que ocorreu nestes três meses foi uma corrida "atrás do prejuízo". Como subitamente havia contagiados novos, espalhados por todos os concelhos da região, em contacto social com novos grupos sociais até aí não expostos, começaram a surgir surtos por todos os concelhos da região de Lisboa, que eram atacados e em geral contidos pelas autoridades de saúde. Ficaram até ao final apenas algumas freguesias mais complexas, mas onde o esforço acabou por dar resultado também.
À medida que pessoas de outras partes do país iam a Lisboa e regressavam às suas localidades, iam gerando novos surtos. Contudo, como o contágio no resto do país estava praticamente parado, os serviços de saúde tinham capacidade humana para ir atacar esses surtos e foram sendo contidos. Isto gerou no gráfico global uma nova fase em "S", em curva sigmoide assimétrica, correspondente à etiqueta em azul. Note-se que é uma curva apesar de tudo mais lenta, mais plana, do que a semelhante da 2.ª fase, porque agora os cuidados da população vão sendo cada vez mais generalizados. Se por um lado havia alguma descontração por não se estar a viver o crescimento explosivo, o entranhar dos hábitos no dia-a-dia foi notoriamente eficaz a tornar o crescimento mais lento.
No gráfico das regiões, este movimento de ida de pessoas a Lisboa e regresso às suas localidades gerou o efeito em "lomba" idêntico ao de Lisboa, obviamente mais contido como já expliquei acima.
No dia 15 de julho deram-se os festejos da conquista do campeonato nacional de futebol (OK, "1.ª Liga") pelo Futebol Clube do Porto, em geral sem cuidados. O efeito foi notório a partir de 6 dias depois, 21 de julho: a zona Norte deixou de estar em forma de "lomba" e passou a crescer rapidamente. Contudo, como em Lisboa se estava a diminuir ao mesmo tempo, um efeito compensou o outro e o aspeto geral do país era semelhante.

4.ª fase: estamos em novo crescimento, mas de que tipo?

Por volta do dia 11 ou 12 de agosto, há nova mudança: o ritmo em curva sigmoide assimétrica anterior, que vinha a aplanar, a ficar quase anulado como na 2.ª fase, foi quebrado: voltou a haver um crescimento, sendo ainda cedo para descortinar que tipo de crescimento é, mas pelo menos não é explosivo. É algum tipo gerível pelo sistema de saúde: linear, sigmoide, etc.
Tratam-se de contágios ocorridos a partir de 5-6 de agosto. Note-se que é generalizável a todo o país: Lisboa deixa de travar, começa a apresentar um ritmo regular de contágios; o Centro idem; o Norte, onde se antevia um abrandamento dos surtos pós-festejos, mantém o crescimento acelerado. Agosto começou a um sábado, pelo que os dias 5-6 de agosto correspondem ao meio da primeira semana de férias de muitos portugueses, quer residentes em Portugal, quer emigrados que visitam o país. Uma hipótese que se pode levantar é que uns e outros se tenham comportado da mesma forma: ido de férias com alguma cautela, mas após alguns dias começado a descontrair talvez mais do que o devido. Mas é cedo para sabermos se esta hipótese é verdadeira.

5.ª fase: e o futuro?

O destino mais expectável é que esta fase atual geral gere um efeito em "lomba" como a segunda fase, graças aos esforços de contenção dos surtos pelas autoridades de saúde. Contudo, ainda é cedo para o saber, porque se a hipótese de descontração em férias for verdadeira, só no início de setembro veremos a generalidade do seu efeito.
É no início de setembro que as crianças regressam às escolas, onde talvez se verifique um comportamento semelhante ao da hipótese de comportamento em férias: cauteloso nos primeiros dias, descuidado nos seguintes. Como a maioria dos contagiados, especialmente jovens, não apresenta sintomas - mas contagia outros passados alguns dias - é expectável que seja na segunda semana de aulas que comece a haver contágios decorrentes disso. Como só daí a uma semana é que esses contágios serão detetados e reportados, é natural que só no final da terceira semana de aulas comece a haver contágios detetados entre a população mais idosa: avós dos alunos, pais dos funcionários, etc. Se a reação for rápida por parte das autoridades face a cada surto, como é de esperar que seja, provavelmente teremos uma nova curva em "s" (sigmóide assimétrica) como nas fases 2 e 3. Se for lenta, como os óbitos só surgirão em número visível três semanas após os contágios a idosos, então a reação da população (e das autoridades) só surgirá no final de outubro ou início de novembro. Esperemos que não seja esse o caso, porque esse atraso na reação lançar-nos-ia para uma fase de novo crescimento rápido como está neste momento a ocorrer em Espanha. 

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