quinta-feira, março 12, 2020

Socorro! A COVID-19 fechou a universidade, como ensino?

Sugestões pragmáticas para passagem de contingência do ensino presencial para online

(Leonel Morgado, leonel.morgado@uab.pt, Universidade Aberta, 2020-03-12)
http://hdl.handle.net/10400.2/9471
A pandemia em curso do vírus corona já levou ao encerramento de várias universidades e politécnicos do país, com recomendações aos colegas para substituírem as aulas por meios online. Já fui contactado por alguns colegas a pedirem-me sugestões e indicações.
Assim, pese as inevitáveis imprecisões de algo escrito ao correr da pena e bater de teclas, espero contribuir para ajudar os colegas do ensino presencial neste período complicado.



A Universidade Aberta (UAb) universidade pública portuguesa totalmente online, onde leciono desde 2013, tem já 32 anos de experiência a lecionar à distância, 13 dos quais online seguindo o seu Modelo Pedagógico Virtual. Estamos a reformulá-lo para incluir as novas realidades tecnológicas, um processo ainda não concluído.




Há muita informação online, claro, quer na Universidade Aberta, quer noutras instituições e plataformas. Contudo, para quem tem de passar a lecionar online de um dia para o outro, provavelmente não há tempo, estrutura administrativa e até autoconfiança para aprender a adotar um modelo pedagógico completo.

Um aspeto importante é que as universidades presenciais têm um público muito diferente do da Universidade Aberta: enquanto que na UAb o aluno-tipo tem entre 30 e 50 anos, estando geralmente a trabalhar e com menores ou outras pessoas a cargo, nas universidades presenciais o aluno-tipo tem entre 18 e 23 anos, sem responsabilidades profissionais ou familiares.

Com isto em vista (os colegas a precisar de apoio rápido e pragmático e tendo presente que a parte administrativa está organizada para 9 horas letivas por semana por docente - 12 no ensino superior politécnico - com alunos sem restrições de horário), aqui deixo as minhas sugestões de contingência

1.ª - Não se ponham a transmitir as aulas teóricas em vídeo

Assumamos os factos: poucos dos alunos do auditório estão a aprender alguma coisa com a vossa palestra de 1 hora ou 2 horas. Sim, sabemos que sois oradores magníficos, com uma capacidade expositiva fenomenal. Sim, sabemos que os alunos são adultos responsáveis, que só não prestam atenção se não quiserem e até têm obrigação de prestar. Sabemos isso tudo. Mas de facto também sabemos que a aula expositiva tradicional das universidades é uma forma completamente ineficiente de aproveitar o tempo. Se fosse eficiente, podiam-se fazer as frequências e exames à saída das aulas, que os alunos revelariam ter aprendido muito bem. Mas não: após gastarem uma ou duas horas a ouvir uma exposição, os alunos ainda têm de ir estudar tudo outra vez para realmente aprenderem. Ou seja: as aulas expositivas são eficazes é a enquadrar, a preparar o ponto de vista dos alunos para o estudo posterior, a obrigá-los a estar algum tempo (mas não estarão a hora inteira, a turma inteira) a prestar atenção, porque sabemos bem que muitos só se preocuparão com o estudo mais perto dos momentos de avaliação.

Por isso, se forem gravar as vossas aulas ou transmiti-las ao vivo em video streaming, só estão a cumprir calendário. Será desmotivante para vós (porque não podeis interagir da maneira imediata e flexível a que estais habituados). E será desmotivante para os alunos (porque ainda acharão as aulas mais maçadoras do que habitualmente).

As boas aulas "teóricas" não são expositivas: são diversificadas. Enquadradoras, dando uma perspetiva pessoal do docente sobre a matéria cujo estudo indica; propiciadoras de exemplos que criam conflitos entre as expetativas dos alunos e a realidade, alertando-os para o que podem não reparar num estudo tradicional; apoiam a autorreflexão e a organização do trabalho de estudo; e promovem o debate, para dar aos alunos forma de desenvolver ligações cognitivas entre o que sabem e as interpretações que desenvolvem, e os conhecimentos e perspetivas que o docente quer que atinjam. 

Na próxima sugestão dou-vos alternativas às aulas em vídeo.

2.ª - Usem uma plataforma online para organizar o estudo e a interação dos alunos

Em vez de gravarem ou transmitirem aulas téoricas, arranjem um espaço online (pode ser no Moodle da vossa instituição, no Blackboard, no Canvas ou no sistema LMS que usarem, se não tiverem nenhum podem criar um espaço online em muitas plataformas colaborativas disponíveis ou até combinar um blogue com uma unidade partilhada na cloud, seja na portuguesa MEO Cloud seja nas internacionais OneDrive, Google Drive, Dropbox ou outras).

2.A - Identifiquem para cada semana quais os materiais que os alunos têm de estudar

Ou seja, quais são as páginas relevantes do livro? Quais os artigos? Os vídeos online? A documentação técnica? Os relatos de casos?

2.B - Indiquem qual é o objetivo de estudo em cada material - objetivamente

Ou seja, não se limitem a dizer "estude estas páginas e estas". O aluno irá lê-las sem saber se o objetivo é decorar factos ou extrair alguma reflexão. Não saberá se é para confrontar as ideias das conclusões do artigo 1 com a tabela intermédia do artigo 2 ou se é para acumular os factos de um artigo com os do seguinte. Digam aos alunos o que é que pretendem que atinjam em cada leitura/visualização/análise.
Nisto incluam algumas atividades formativas. Exercícios tradicionais (não complicados) com soluções, problemas para analisar com resolução... expliquem que o objetivo é os alunos verem se conseguem chegar às resoluções ou soluções através do estudo.
No caso de matéria sem respostas certas, proporcionem aos alunos rubricas de avaliação: ou seja, tabelas que os ajudam a perceber quais os aspetos estruturais de uma resposta sólida, inconsistente ou incoerente. As minhas colegas Lúcia Amante e Isolina Oliveira têm um bom trabalho - objetivo - sobre isso e podem encontrar muitos exemplos online.

2.C - Definam atividades de debate e reflexão sobre a matéria entre toda a turma - não apenas "Espaços de dúvidas"

Mesmo com indicações, os alunos podem sentir-se desmotivados a estudar ou não estar realmente a sentir que avançam nesse estudo. Só tem dúvidas quem já está a avançar com êxito no estudo. Quem realmente precisa da vossa intervenção docente provavelmente... não tem dúvidas. Mas não é possível atuar um-para-um com turmas que enchem auditórios. Por isso, é preciso que eles próprios entrem em debate - ou convosco, mas em grupo, como numa aula, não como em reuniões de gabinete.

Se tiverdes acesso a um Moodle ou outra plataforma LMS, criai um fórum (pelo menos) para cada tópico. Nesse fórum, indiquem quais os aspetos-chave que requerem debate. Não apenas coisas que sejam lineares da leitura. Não! Coloquem casos reais interessantes para análise. Dilemas teóricos. Exercícios, problemas ou casos que não sejam de resolução simples, que levem muitos alunos a pedir ajuda aos colegas e ao docente.

2.D - Se usarem algum vídeo vosso, que seja curto e enquadrador/motivador, não expositivo

 Os alunos gostam de vídeos. É uma forma de linguagem comunicacional que lhes agrada, desde que sejam bem feitos. E quando a linguagem agrada, isso contribui para a motivação. Mas também conferem a quem os faz e a quem os vê uma falsa sensação de competência. A investigação empírica diz-nos que os vídeos têm taxas de visualização muito diferenciadas, entre quem os vê na íntegra e quem só vê alguns minutos. 
Por isso, os vídeos mais eficazes são para efeitos muito específicos.
  • De vez em quando, mostrem o vosso rosto ou usem a vossa voz, para os alunos sentirem que realmente é o seu professor que ali esta (não é obrigatório nem têm de fazer isto em todos os vídeos) - eu tenho apenas um com o meu rosto, para abrir a disciplina.
  • Façam os vídeos sempre curtos (3-5 minutos, no máximo 6 ou 7) para dar a vossa perspetiva sobre a matéria que vai ser estudada, para orientar o estudo, para motivar. Deixo aqui os exemplos dos meus para uma disciplina de engenharia informática na Universidade Aberta, mas estão longe de ser perfeitos - isto é sempre um processo em melhoria contínua.
  • Indiquem vídeos que já estejam na Net, que sabeis ser de boa qualidade, como forma de encaminhar os alunos para materiais bons, em vez de os deixar à deriva no meio de um mar de desinformação.

3.ª - Estejam presentes na vossa disciplina online

Não basta disponibilizar conteúdos e atividades e ficar à espera de dúvidas. Isso só apoiará a pequena fatia de alunos muito dedicados. E mesmo esses não estão a ter o apoio devido, porque com mais presença vossa chegariam mais longe. Há 9 horas letivas por semana (12 no ensino superior politécnico) a dedicar à lecionação. 

3.A - Semeiem para colherem

Como já referi na sugestão 2.C, não se limitem a anunciar estar disponíveis para tirar dúvidas. É vossa responsabilidade perturbar as águas do pensamento para que as dúvidas emerjam. Orientem o debate, dando objetivos concretos. Por ex., "Cada aluno deve analisar aqui um vídeo do YouTube diferente, à luz dos aspetos x, y, z da matéria"; "Partilhem aqui o resultado que vos deu quando usaram a ferramenta XPTO em..."; "Devem debater estes casos/exemplos/dilemas segundo os princípios de..."; "Como podemos combinar os princípios de Fulano com os de Sicrano, quando são contraditórios neste caso...?"; etc.

3.B - Intervenham regularmente

Se os alunos não estiverem a participar, ide ao fórum ou local de debate e coloquem algum incentivo. Pode ser só encorajamento e disponibilidade, de início. Mas podeis também dar um exemplo do que pretendeis que seja feito. Ou partilhar alguma novidade ou complemento interessante. Etc.

3.C - Falem com os alunos, não para os alunos

Isto vem na continuidade do 3.B. Não basta dizer "Então, ninguém tem dúvidas?". Até pode ser contraproducente. Os alunos têm de sentir que vale a pena intervirem, que ganham com isso no que aprendem e no que os professor os esclarece. Se sentirem que só podem intervir para exibir competência e domínio... não intervirão senão os que menos precisariam da vossa ação docente.
Ao incentivarem, mostrem exemplos do que pode ser um problema ou dúvida que aparece ao estudar e que faria perder muito tempo, mas em minutos pode ser resolvida pelos colegas ou pelo professor se for exposta.
Ao responderem aos alunos, não tentem engolir o mar respondendo a cada um (a menos que sejam poucos): agrupem várias respostas que tenham algo em comum e façam uma resposta global a todas elas, como se numa aula presencial tivessem deixado falar vários alunos e depois interviessem para consolidar ou dissecar o debate.
Tentem interpretar a que está por trás dos equívocos dos alunos. Em vez de assumirem logo um erro de entendimento ou uma desatenção, perguntem, com hipóteses, se o aluno estará a ver a questão desta ou daquela forma. Deixe a resposta final para uma fase posterior, quando ficar mais claro para si, para o aluno e para os colegas que estão todos sintonizados.

4.ª - Usem os momentos síncronos para encorajamento e apoio humano: não para matéria

Os alunos do presencial estão todos no mesmo fuso horário e, ao contrário dos da Universidade Aberta, estão quase todos com a semana livre para se dedicarem ao estudo (ou seja, a grande maioria não tem emprego nem familiares a cargo). Isto permite-vos agendar sessões síncronas e até ter efetivamente os alunos presentes nelas, sejam por videoconferência sejam por chat.

4.A - Usem um espaço comunitário para evitar sentimentos de isolamento

Hoje em dia os alunos não estão em frente de um computador a toda a hora. Mas estão sempre com telemóveis. Por isso, ter um espaço de chat com notificações móveis é uma solução boa para quebrar sentimentos de isolamento. Podem usar, por exemplo, o WhatsApp, que permite aos alunos ter o conforto de saberem que o que escrevem é imediatamente recebido pela turma. Quem estiver disponível pode reagir e esse conforto do apoio disponível é reconfortante. Podem complementar isto com espaços de publicação e partilha de documentos ou outros materiais, como um wiki, um fórum do Moodle, uma pasta partilhada na cloud, ou até um mundo virtual 3D, conforme a vossa disponibilidade, ambição e perspetiva.

4.B - Tirem dúvidas ao vivo só para aspetos pessoais ou urgentes, não como atalho

Se um aluno sentir que basta colocar uma pergunta no WhatsApp, Skype, Zoom, etc. para ter resposta... passará a usar sempre esse canal. Só que há mais alunos além desse! Se a dúvida não tiver dimensões pessoais ou outras que recomendem a privacidade, o mais correto é o compromisso de presteza ocorrer nesse momento síncrono mas ser feito no espaço online partilhado, em benefício de todos. Por ex.: "Coloque essa dúvida no fórum deste tema, que eu comprometo-me a responder-lhe lá na próxima meia hora - na próxima hora - até ao fim do dia" (conforme a situação o recomende).
Desta maneira, o aluno tem o conforto de saber que tem resposta eficaz e garantida, que o professor está presente, mas a dúvida é exposta a todos, gerando dinâmica na disciplina e incentivando outros alunos a exporem também as suas dúvidas. E a resposta do professor beneficia o debate geral, não apenas o aluno que a colocou em privado.
Se o caso em apreço recomendar uma resolução imediata da dúvida, então que se resolva de imediato. Por ex.,quando o aluno tem apenas aquele horário disponível num sítio com rede antes de regressar a um domicílio sem rede, ou porque tem estado em recuperação de um problema de saúde e não convém desperdiçar um momento em que se sentiu restabelecido. Mas nesses casos, deve-se colocar ao aluno o compromisso de partilha com a turma: "Eu vou-lhe responder agora, mas faça-me o favor de depois ir ao fórum da disciplina, partilhar a sua dúvida e a minha resposta, em benefício de todos os colegas." É importante que seja o aluno a fazer essa partilha, se possível, por ser um contributo para uma dinâmica entre pares (alunos) não apenas uma dinâmica magistral do professor.

5.ª - Informem-se mais e mais sobre o ensino online e inovem

Voltando ao início, há uma imensidade de trabalhos sobre como ensinar online. As dicas que aqui deixei são apenas uma gota inicial, para esta situação de contingência. Há mais colegas a ajudar, podem começar pelas dicas do George Veletsianos. Depois ver os 10 princípios fundamentais deste artigo da Chronicle of Higher Education. E a seguir voltar a mais conselhos para a pandemia atual, dados pelo Tony Bates.

Além das dicas, há uma imensidão de técnicas, práticas e conhecimento. Um bom resumo de 25 anos de tecnologia educativa foi publicado recentemente enquanto livro em PDF gratuito pela Athabasca University Press. Nas comunidades e coleções do Repositório Aberto da UAb encontram uma infinidades de recursos e trabalhos sobre os mais variados aspetos da área. E tanto no YouTube como em muitas outras plataformas e sítios Web encontrarão sugestões, instruções, exemplos, indicações, de uma multiplicidade de técnicas e meios.
Por exemplo, podem usar o Twine para os alunos criarem histórias interativas online; mapas mentais partilhados para irem acompanhando o processo de extração de significado por parte dos alunos de um conjunto desorganizado de espécimes de documentação; ter portfólios interligados de páginas Web e documentos partilhados para acompanhar trabalhos de equipa distribuídos; e muito mais.

6.ª - Sejam académicos também ao refletir sobre e-learning, usem o sentido crítico, não caiam no achismo

Demasiadas pessoas que evitam opiniões desinformadas ou ignorantes na sua área chegam ao ensino, à educação, à aprendizagem, cheias de certezas. As ciências da educação já têm cerca de 100 anos de evolução enquanto ciência. Há construção de saber. Há uma enorme comunidade que estuda, investiga, publica resultados e tenta reproduzi-los. Pormenores como estabelecer a duração dos vídeos conforme o objetivo, a sua estrutura, a utilização deles no contexto de uma disciplina, a forma de escrever, etc.... para tudo isto há investigação. O Google Scholar ajuda e vale a pena, como em todas as áreas científicas, explorar a literatura da área para irmos ficando cada vez mais informados.

Colegas, vale a pena enveredar pelo ensino à distância.
E quem sabe, até possam no futuro usá-lo em combinação com as aulas presenciais, para extrair de ambas o máximo valor.

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